É narrado pelo personagem protagonista Nogueira,
que numa retrospectiva insegura, relembra o passado. Volta aos 17 anos, quando
esteve hospedado na casa do escrivão Meneses, que fora casado com uma de suas
primas, e agora com a boa e santa Conceição. Recorda-se da noite de Natal,
quando esperava a meia-noite para acordar o vizinho que iria acompanhá-lo.
Enquanto lia Os três mosqueteiros, D.
Conceição entra na sala e iniciam um diálogo insinuante, misterioso e aparentemente
banal, deixa-o confuso, como bem expressa ao iniciar a narrativa “Nunca pude entender a conversação que tive
com uma senhora [...]”, diálogo que
só finda devido à missa que ele deveria ir. No dia seguinte, Conceição age como
se nada houvesse acontecido. Nogueira retorna à Mangaratiba e mais tarde toma
conhecimento da morte de Meneses e do casamento da boa Conceição com o
escrevente juramentado do marido.
Analisando
a estrutura narrativa do conto, a
começar pelo enredo – conjunto de fatos que constituem a ação - percebe-se que não há ocorrência sucessiva,
portanto não-linear. Através de uma retrospectiva o narrador-personagem
constrói a narrativa. Primeiramente há a
exposição dos personagens:
A casa em que eu estava hospedado era a do escrivão Meneses, que fora
casado, em primeiras núpcias, com uma de minhas primas A segunda mulher,
Conceição, e a mãe desta acolheram-me bem quando vim de Mangaratiba para o Rio
de Janeiro, meses antes, a estudar preparatórios. Vivia tranqüilo, naquela casa
assobradada da Rua do Senado, com os meus livros, poucas relações, alguns
passeios. A família era pequena, o escrivão, a mulher, a sogra e duas escravas.
O estabelecimento do conflito
acontece quando Conceição entra na sala interrompendo a leitura do jovem.
Inicia-se
uma longa conversa, um jogo de sedução subjetivo, uma aproximação, uma troca de olhares, esses
fatos correspondem ao desenvolvimento
do conto.
O clímax se
dá no momento que Conceição anda inquieta, senta-se sensualmente, seduz o jovem
inexperiente:
E não saía daquela posição, que me enchia de gosto, tão perto ficavam as
nossas caras. Realmente, não era preciso falar alto para ser ouvido:
cochichávamos os dois, eu mais que ela, porque falava mais; ela, às vezes,
ficava séria, muito séria, com a testa um pouco franzida. Afinal, cansou,
trocou de atitude e de lugar. Deu volta à mesa e veio sentar-se do meu lado, no
canapé. Voltei-me e pude ver, a furto, o bico das chinelas; mas foi só o tempo
que ela gastou em sentar-se, o roupão era comprido e cobriu-as logo. Recordo-me
que eram pretas. (1983, 83)
Havia também umas pausas. Duas outras vezes, pareceu-me que a via
dormir; mas os olhos, cerrados por um instante, abriam-se logo sem sono nem
fadiga, como se ela os houvesse fechado para ver melhor. Uma dessas vezes creio
que deu por mim embebido na sua pessoa, e lembra-me que os tornou a fechar, não
sei se apressada ou vagarosamente. (1983, 84)
O
‘elemento’ braço aparece em várias obras de Machado Quincas Borba, Dom Casmurro, no conto Uns braços, inclusive no conto em questão;
Pouco a pouco, tinha-se reclinado; fincara
os cotovelos no mármore da mesa e metera o rosto entre as mãos espalmadas. Não
estando abotoadas as mangas, caíram naturalmente, e eu vi-lhe metade dos
braços, muito claros, e menos magros do que se poderiam supor.
A vista não era nova para mim, posto também não fosse comum; naquele momento, porém, a impressão que tive foi grande. As veias eram tão azuis, que apesar da pouca claridade, podia, contá-las do meu lugar. A presença de Conceição espertara-me ainda mais que o livro. (1983, p.83)
A vista não era nova para mim, posto também não fosse comum; naquele momento, porém, a impressão que tive foi grande. As veias eram tão azuis, que apesar da pouca claridade, podia, contá-las do meu lugar. A presença de Conceição espertara-me ainda mais que o livro. (1983, p.83)
O desenlace ocorre
no momento em que o vizinho bate na janela chamando-o para a Missa. Há uma
quebra daquela atmosfera de intimidade e sedução, das quais, aparentemente, não
restam vestígios no dia seguinte, pelo menos para Conceição, que demonstra a
bondade que lhe é característica.
A
presença do quadro de “Cleópatra”, pode ser interpretado como um motivo
narrativo associado- importante para a
coerência actancial interna. Ao dizer que os quadros estavam velhos e que
preferia imagens de santas, Conceição parece querer chamar a atenção de
Nogueira para o quadro de Cleópatra, rainha famosa bela beleza e seus romances
com Marco Antônio e Júlio César.
O espaço inicial
e final da narrativa é o mesmo, trata-se do espaço exterior - dehors sartreano. Passa-se no Rio de
Janeiro, na Rua do Senado, num casa mal assombrada. A ação acontece na sala.
Quanto
à representação temporal, trata-se
do sistema horológico, objetivo e marcado de forma precisa:
“Os minutos voavam, ao contrário do que
costumam fazer, quando são de espera; ouvi bater onze horas, mas quase sem dar
por elas, um acaso”. (1983,p.82),
“Às dez
horas da noite toda a gente estava nos quartos; às dez e meia a casa dormia”. (1983,
p.81)
“Naquela
noite de Natal foi o escrivão ao teatro. Era pelos anos de 1861 ou 1862” (1983,
p.81)
“combinei que eu iria acordá-lo à
meia-noite.” (1983,p.81)
A técnica do Flashback é
perceptível no conto, a volta ao tempo para recordar algo relevante do passado:
“Nunca pude entender a conversação que
tive com uma senhora, há muitos anos, contava eu dezessete, ela trinta” (1983,p.
81).
“Há impressões dessa noite, que me
aparecem truncadas ou confusas” (1983,p.85)
Nogueira
reflete sobre aquela noite de Natal dezessete anos atrás, para tentar entender
aquela conversa com Dona Conceição, conversa que o deixou intrigado e confuso
ao longo dos anos.
Quanto
à natureza, os personagens pertencem à categoria de seres humanos. São eles:
Nogueira, rapaz ingênuo, 17 anos, estudante de Mangaratiba que vai ao Rio de
Janeiro estudar preparatórios. Conceição, 30 anos, considerada boa e santa pelo
narrador, temperamento moderado, tolerava as traições do marido. Chiquinho
Meneses é escrivão, casado com Conceição, antes com a prima de Nogueira,
adúltero, morreu de apoplexia. Meneses, sua sogra e as duas escravas são apenas citados na narrativa.
Os
personagens principais são Conceição e Nogueira, sendo este o protagonista,
pertencente ao primeiro plano. Conceição é uma personagem esférica, a princípio
era natural, previsível, benigna, mas naquela noite de Natal, surpreende o
narrador-personagem e o próprio leitor, revela-se uma mulher sedutora,
insinuante, madura.
O
vizinho, inconscientemente, é o antagonista, pois atrapalha um momento de
enlevo do protagonista.
O
nome dos personagens, às vezes, é um pretexto motivacional, pode ser um dos
motivos associado à ação. Como ocorre com Conceição:
“O nome da personagem alude à Imaculada Conceição, mas vem de concipio, composto de cum (com, junto a) e capio (tomar, agarrar, aferrar). Se o erotismo e a capacidade de sedução de Conceição são reprimidos, inconsistentes, quase (in)existentes, no momento da representação o seu olhar perturbador persegue Nogueira.” (1996)
Em Missa do Galo há apenas a visão do narrador-personagem, por
conseguinte, ele mais conta (‘telling’) do que mostra (‘showing’). Segundo a
proposta de Komroff, trata-se de um narrador interno – primeira pessoa,
protagonista. Na topologia de Norman Friedman: “eu” protagonista ou
narrador-protagonista, aquele que é limitado, não onisciente. Como a narrativa
é retrospectiva, memorialista, está sujeita a falhas, incertezas:
Há impressões dessa noite, que me
aparecem truncadas ou confusas. Contradigo-me, atrapalho-me.(1983, p.84)
De
acordo com a teoria das visões na narrativa de Jean Pouillon, a relação
narrador-personagem neste conto
machadiano, é a visão com, na qual o
narrador é limitado, expõe o seu ponto
de vista sobre os outros personagens,
acontecimentos e sobre si mesmo. Analisa as reações alheias, mas não tem
certeza delas, não é onisciente. “ Talvez
esteja aborrecida” pensei eu (1983. p82) (grifo meu)
Após
a análise, algumas indagações foram sancionadas, outras surgiram, muitas
interpretações são possíveis, como bem diz Gotlib:
Na verdade, nem ele, nem nós conseguimos ir
até o final das conjeturas, para chegarmos a uma conclusão sobre o que
realmente aconteceu naquela noite, entre Sr. Nogueira e d. Conceição [...]
Por
conseguinte, esse conto, assim como outras obras de Machado, representa um
desafio, um enigma para o leitor, além de proporcionar um leque de
interpretações das mais variadas dependendo da visão de cada pessoa.
REFERÊNCIAS
- GANCHO, Cândida Vilares. Como analisar narrativas. 4. ed. São Paulo: Ática, 1997.
- LEITE, Lígia Chiapini Moraes. O foco narrativo. São Paulo: Ática, 1985.
- __ “Missa do Galo”: ironia romântica amor e leveza. In_____caderno Cepusc de Pesquisa. Série ensaios. n2. Belo Horizonte: PUC Minas, p. 34 – 42 (Site: www.ich.pucminas.br/.../Missa%20do%20galo%20revisado.pdf / em 25 de Novembro)
- ASSIS, Machado de. Missa do Galo. In____Machado de Assis Contos. 10 ed. São Paulo: Ática, 1983, p.81-85
- · GOTLIB, Nádia Batella. Teoria do Conto. Série Princípios Editora Ática; Rio de Janeiro, 2006 (versão em PDF)
0 comentários:
Postar um comentário